sexta-feira, julho 13, 2007

Sobre a cadelinha Cleo


O Miguel namora com a Maria, e a Maria é dona da Cleo (quer dizer, Cleópatra). Cleo é uma cadelinha, parece que uma cadela de raça, sabem, daquelas incompressíveis, de bolso. É uma daquelas de que temos muita pena: pequenina-pequenina, de olhos bem grandes e nervosa, como são todas as pequeninas. Esta criatura corre pela casa aos solavancos, com estranhas convulsões. Está sempre com frio e mija-se constantemente. Eu recuso-me a acreditar, que alguém seleccionou de propósito esta miséria, o mais provável é que os antepassados pré-históricos da Cleo - os verdadeiros cães grandes, peludos e com dentes - por qualquer razão que a ciência desconhece, cruzavam-se de vez em quando com um hamster pré-histórico qualquer ou com outros roedores. E a aparência desta pequena miséria, com o nome orgulhoso de Cleópatra, faz lembrar qualquer coisa intermédia entre um hamster e uma ratazana doente.
Quem sabe se ela já era assim nervosa antes de conhecer o Miguel. O facto é que depois de acontecer isso a sua vida mudou radicalmente! Isto acontece muitas vezes, os pequenos cãezinhos mijam-se, e por vezes até se cagam, com o transbordo das emoções. Enfim, suponhamos que eles estão demasiado contentes: eles começam a tremer compulsivamente, tentando encontrar um escape para a sua felicidade, ganem, rodopiam, e depois de repente param, os olhos do tamanho de um euro, e começa escorregar…
Antigamente a Cleo gostava da vida, e mijava-se excepcionalmente apenas por emoções positivas, do tipo: a dona chegou, pumba, um poço; ou pá, deram rebuçadinho – pumba, outro, e por aí adiante. Mas quando surgiu na sua vida o Miguel tudo se tornou mais sombrio. Agora ela mija-se e caga-se de medo, quer dizer, só de ver o Miguel, cheirá-lo ou ouvi-lo… Bom, os medos da Cleo têm razões antigas.
A sua relação não começou da melhor maneira. Quando o Miguel ainda só dava alguns passeios com a Maria e ainda não vivia em sua casa, ele comportava-se bem – descascava as batatas, ía ao supermercado, deitava o lixo fora, etc. Mas a sôfrega e sempre esfomeada Cleo tinha o hábito de fanar as “guloseimas” do balde de lixo, e depois esconde-las em qualquer lado, tipo debaixo do sofá (isto são com certeza os genes de hamster) – enquanto o balde estava na porta de entrada, ela mergulhava nele silenciosamente, esgravatava, mijava-se de felicidade e pirava-se sem ninguém dar conta. O Miguel sabia desta cena. Então uma vez a Cleo não teve tempo para saltar do balde e o seu passeio acabou com numa queda terrível pela conduta de despejo do lixo, do oitavo piso para a lixeira, junto aos seus potenciais familiares – as ratazanas. Eu acho, que os nervos de um cãozinho destes já não são de aço, e aqui, ainda por cima estes saltos prolongados. Estiveram à procura da Cleo. Procuraram, procuraram, pensaram que tinha fugido, depois pensaram que tinha sido roubada (quem precisa dela...) – enfim, foi uma desgraça na família, mas depois o Miguel indo de manhã para o trabalho ouviu um ladrar soluçado, suspeitosamente conhecido. Então, quando o cão foi retirado, ela apareceu ainda pior do que esperava, teve uma perda parcial de orientação e deixou de ladrar, mas como diz o Miguel, fartou-se das guloseimas do lixo, porra, para o resto de toda a sua vida. Quase passadas duas semanas deste acontecimento, eu e o Miguel fizemos uma viagem para o subúrbio com as nossas miúdas e com a Cleo– tipo cerveja, praia, badmington… E quando começámos a jogar badmington, o Miguel resolveu reparar a sua culpa perante o animal e decidiu jogar com a miserável criatura. Tenho de sublinhar, que a Cleo naquele momento pôs o seu olho para o volante-de-penas e queria alguma coisa dele… Miguel também reparou nisso, pousou o volante no chão e com um sorriso dum bom Gestapo começou a dar ordens do género: “Cleo face, Cleo anface…” A Cleo, não se lançou para esta duvidosa brincadeira, porque mesmo assim ainda teve medo de avançar para junto do Miguel. Mais próximo do que cinco metros e desmaiava como se tivesse visto um balde de lixo. O Miguel tentou convencê-la durante uns cinco minutos, e depois com as palavras “vai te lixar” queria mostrar-me como levantar correctamente o volante, batendo por baixo de uma só vez, e oscilou com a raquete. Neste preciso momento a astuta e ávida Cleo resolveu finalmente seguir o volante, enquanto o Miguel não via a cadela lançou-se a ele... mas esta porra corre depressa, nem se vê, zum-zum e já tem o volante na boca... e o Miguel já oscilou com a raquete e não conseguiu parar... Enfim, passado um segundo a Cleo recebeu uma palmada no focinho, nem por isso fraco, e acompanhada pelo volante, numa velocidade próxima da luz, voou para os arbustos por perto. O Miguel dobrou a raquete em dois sítios. Quando ele passados dois minutos percebeu o que tinha feito, rapidamente largou a arma do assassinato como se fosse uma criança a largar uma caca e começou a olhar para a sua Maria com uns olhos de muita pena, mas a outra vendo como tudo se passou teve uma histeria… Milagrosamente a Cleo foi encontrada. A sua aparência, digamos claramente, não era boa – com as sobrecargas ela teve um colapso do sistema nervoso. A cadela encolheu de tamanho para o de um periquito, mas os olhinhos pelo contrário tornaram-se cada um no tamanho da sua cabeça e cada um olhava para um lado diferente. Desta vez a perda de orientação foi total – o animal deixou de responder pelo seu próprio nome e ainda durante duas semanas andou pela casa com estranhos desenhos diagonais, como se fosse uma abelha. O volante, por acaso não foi encontrado, o Miguel afirmava que a Cleo o engoliu.

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