sábado, fevereiro 17, 2007

No post de hoje, resolvi publicar um conto lindo, de uma escritora russa do início do século XX de nome Teffi. Este texto foi traduzido por mim, com a ajuda de um amigo meu, o Miguel, que também o achou fascinante. Leiam e desfrutem esta peça.
TEFFI "Vida e a gola"
As pessoas imaginam que tem poder sobre as coisas. Ás vezes uma pequena coisinha entra na nossa vida e muda-nos todo o destino, mas na direcção contrária á que ele tem de seguir. Maria, há três anos, era uma mulher honesta dum homem honesto. Era caladinha e tímida. Não dava nas vistas, amava fielmente o seu marido e contentava-se com a sua vida simples. Mas, certo dia, foi á Baixa e olhando para uma montra de uma loja de manufactura, viu uma gola bem engomada de senhora, com uma fita amarela que a atravessava. Como uma senhora honesta exclamou: “Que coisa estranha!”. Depois, entrou e comprou. Experimentou em casa, frente ao espelho. Afinal, se prender aquela fita amarela de lado em vez de à frente, faz-se uma coisa, inexplicável, que é aliás, mais bela do que feia... Mas a gola exigiu uma nova camisa. Das que tinha, nem uma servia bem a gola. Maria sofreu a noite toda, pela manhã voltou aos Armazéns e comprou uma camisa com o dinheiro das poupanças. Experimentou tudo junto. Estava muito bom, mas a saia estragava todo o estilo. A gola claramente, e com toda a certeza, exigia uma saia redonda com as pregas profundas.
Já não havia dinheiro disponível. Mas não se pode parar a meio do caminho?!
Empenhou as pratas e uma pulseira.
A alma estava em aflição e terror, e quando a gola exigiu novas botas, ela deitou-se na cama e chorou toda a tarde.
No dia seguinte ela andava sem relógio de pulso, mas calçada com as botas, que a gola encomendou.
À noite, ela pálida e confusa, gaguejando, falava à sua avó:
- Estou aqui por um minuto só. O meu marido está doente. O médico mandou todos os dias esfregar-se com conhaque, mas isso é tão caro...
A avozinha é generosa, e já na manhã seguinte a Mariazinha conseguiu comprar um chapéu, um cinto e as luvas: que ficavam bem com o estilo da gola.
Os dias seguintes foram ainda mais pesados. Ela andava por todos os familiares e amigos, mentia e pedinchava dinheiro, mas depois comprou um sofá repugnante em linha azul. Só de uma olhadela para o sofá ficava enjoada, o marido honesto também e até a velha cozinheira que roubava constantemente. Mas já há uns dias que a gola exigiu com insistência este sofá.
Ela começou a levar uma vida estranha. Não a sua. A vida da gola. A gola não era dum estilo claro, mas misturado e Maria tentando agradá-la desviou-se completamente do seu caminho.
- Se és inglesa e estás a exigir que eu coma soja, então para que tens esse laço amarelo? Para quê esta degradação que não consigo entender e que me põe em baixo?
Como uma criatura fraca e sem feitios, ela passado pouco tempo, baixou os braços e flutuou pela corrente, que a gola-canalha, manipulava com facilidade.
Ela cortou o cabelo, começou fumar e dava gargalhadas altas, se ouvi-se qualquer coisa de duplo sentido, indecorosa.
Muito no fundo da alma, ainda teve consciência de todo o horror da sua situação e às vezes, à noite ou mesmo de dia, quando a gola estava na lavandaria, ela soluçava e rezava, mas não conseguia encontrar uma saída...
Uma vez, até tentou contar tudo ao marido, mas ele pensou que ela simplesmente mandou uma piada estúpida e lisonjeando-a, riu por muito tempo.
Assim as coisas correram de mal a pior.
E perguntam vocês, porquê não resolveu ela isto mais simples: deitar fora pela janela aquele rebotalho?
Ela não conseguia. E isto não é estranho. Todos os psiquiatras sabem, que para as pessoas nervosas e frouxas, apesar de todas as torturas, alguns sofrimentos são necessários. E não vão trocar este doce sofrimento por uma paz saudável, por nada no mundo.
Então, Maria fraquejou cada vez mais e mais nesta luta, mas a gola fortalecia-se e tornava-se majestosa.
Um dia foi convidada para um jantar. Antes, ela nunca saía a lado nenhum, mas agora a gola enrolou-se ao seu pescoço e foi ao jantar. Aí ela era tão atrevida que chegava a ser inconveniente e rodava a cabeça ora á direita, ora á esquerda.
A meio do jantar um estudante, vizinho da Maria, apertou-lhe a perna por baixo da mesa. Maria explodiu de fúria, mas a gola respondeu por ela:
- É só isto?
Maria com toda a vergonha e horror estava a ouvir e pensava:
- Deus! Onde eu estou?
Depois do jantar o estudante ofereceu-se para acompanhá-la a casa. A gola agradeceu e alegre concordou, antes que a Maria conseguisse entender o que está a passar.
Mal se sentaram no coche, e o estudante murmurou com paixão:
- Minha querida!
Mas a gola riu-se baixinho e sarcasticamente, em resposta. Então o estudante abraçou a Maria e deu um beijo na boca. Os bigodes dele estavam molhados, e todo o beijo respirou com o salmão marinado, que serviam ao jantar.
Maria quase chorou de vergonha e ofensa, mas a gola sem embaraço virou a cabeça dela e riu-se novamente:
- É só isto?
Depois o estudante e a gola, foram ao restaurante ouvir os romenos. Foram à sala privada.
- Mas aqui não há música! – Revoltou-se a Maria.
Mas o estudante e a gola não lhe davam atenção. Eles bebiam o licor, falavam de frivolidade e beijavam-se. Maria voltou para casa já pela manhã. A porta, abriu-lhe o próprio marido honesto. Ele pálido, segurava na mão os recibos da casa de penhores, que tirou da mesa da Maria.
- Onde estavas tu? Não dormi toda a noite! Onde estavas?
Toda a sua alma tremia, mas a gola com agilidade guiava a sua linha.
- Onde estive? Com um estudante esvoacei.
O marido honesto balançou.
- Maria! Mariazinha! Que se passa contigo! Diz-me, porque empenhaste as coisas? Porque pediste emprestado dinheiro aos Fonsecas e Pereiras? Onde meteste o dinheiro?
- Dinheiro? Esbanjei!
E metendo as mãos nos bolços, ela assobiou, como antes nunca soube fazer. Aliás, como sabia ela essa palavra parva “esbanjei”? Será que ela disse isso?
O marido honesto largou-a e transferiu-se para outra cidade. Mas a maior amargura é que no dia seguinte, depois da partida, a gola perdeu-se na lavandaria.
A Maria dócil trabalha num banco. Ela é tão modesta, que fica corada cada vez que ouve qualquer coisa indecorosa.
- E onde está a gola? – Perguntam vocês.
- Não sei nada de nada, respondo eu – Ela foi dada à lavandaria, é aí que tem de perguntar. É a vida!...

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